Ambiente universitário também gera insegurança nas mulheres

ANA CLARA CISCOTTO RIENDA PAIS
7 min readMay 4, 2023

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8 de março é a data conhecida como dia internacional da mulher. Além de comemorações e homenagens, é também um momento de reflexão e reafirmação de uma luta. Luta essa, inclusive, muito presente nos debates universitários, por serem ambientes que historicamente carregam reflexões ideológicas e populares. O que se observa, no entanto, é que esses mesmos locais que conscientizam, acabam falhando com a segurança dessas pessoas.

Não é de hoje que se vê e escuta em manifestações feministas nas universidades públicas gritos como “a universidade é pública, meu corpo não”. E não é por acaso. São inúmeros relatos de importunação e assédio sexual sofridos por alunas e funcionárias dentro dos ambientes universitários, tanto públicos, quanto privados. Segundo um levantamento realizado pelo Instituto Avon, 56% das mulheres relataram ter sofrido assédio sexual em instituições de ensino superior.

E o problema é sistêmico em todo o Brasil. A Universidade Federal de São Paulo (USP), a Universidade de Brasília (UnB) e diversas outras possuem comitês direcionados a lidar com casos de assédio em seus espaços. A Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) possui um fórum para discussão sobre o tema composto por representantes de diversos órgãos e entidades. No entanto, segundo reportagem do jornal O Pharol, de janeiro de 2021 a outubro de 2022 a instituição contabilizava 24 denúncias relacionadas a assédio.

Mais recentemente, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) divulgou a realização de uma pesquisa no campus, que ouviu aproximadamente 6 mil pessoas. Segundo os dados levantados, 11,8% dos estudantes, 10,4% dos docentes e 13,4% dos técnico-administrativos já haviam sofrido assédio sexual na universidade. Entre homens e mulheres entrevistados que afirmaram já terem sido vítimas, a maioria absoluta era do sexo feminino.

Denúncias Graves

Em outubrio do ano passado, dois servidores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) foram indiciados pela Polícia Civil por assédio sexual, estupro e importunação. O inquérito apurava a denúncia do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Asseio, Conservação e Limpeza Urbana, que acusava os dois funcionários da instituição de crimes contra oito terceirizadas que prestavam serviço na instituição.

A denúncia tinha sido feita em maio de 2022, e, em nota, a UFJF afirmou que no dia 7 de junho foi aberto o processo administrativo disciplinar referente ao caso. Um mês depois, 15 de julho, ocorreu o afastamento dos acusados dos exercícios de seus cargos. No entanto, retornaram às atividades ainda em setembro, com a justificativa de que não havia mais amparo legal para que continuassem afastados, “uma vez que o afastamento tinha o objetivo de evitar que os acusados pudessem atrapalhar na apuração das supostas irregularidades”.

Após a conclusão do inquérito, o caso foi encaminhado para a justiça, e a instituição se pronunciou dizendo que pediu prioridade à Procuradoria para apreciação do processo . “No âmbito administrativo, que concerne à Instituição, antes mesmo da manifestação do Sindicato, a UFJF já havia instaurado Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra os envolvidos e produzido provas como a tomada de depoimentos e colhido provas documentais”. Ainda conforme a universidade, todo o material foi enviado à Polícia Civil, à Delegacia da Mulher, ao Ministério Público do Trabalho e à Polícia Federal.”

Leiliane Germano, coordenadora da pasta de mulheres do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFJF, afirma que casos como esse são uma preocupação constante da gestão. “Nós estamos buscando sempre e priorizando o debate sobre toda forma de violência de gênero na universidade.”

Para ela, as alunas da instituição convivem diariamente com a sensação de insegurança e impunidade. “Vira e mexe escuto relatos de companheiras que já passaram por situações de assédio ou conhecem alguém que passou. E sempre oriento a ir nas coordenações e na ouvidoria para que nada passe despercebido”

Segundo Leiliane, hoje existe na Diretoria de Ações Aairmativas da Universidade uma ouvidoria para atender esses casos e a divulgação dessa informação deve ser levada a cada vez mais espaços. “Não podemos naturalizar o assédio, e objetificação dos corpos femininos e nenhum tipo de violência de gênero.”

E além do assédio, diversos outros crimes mais graves podem ser relacionados à violência em ambientes universitários. Mais recentemente, um caso ocorrido na Universidade Federal do Piauí (UFPI) chocou o país e deixou muitas mulheres ainda mais assustadas. Janaína da Silva Bezerra, estudante de jornalismo, foi morta e estuprada em uma calourada que ocorria dentro do campus. E denúncias como essa, infelizmente, já foram registradas em outras universidades do país.

Déborah Franco, estudante de direito da UFPI, relata que convive com essa insegurança desde seu ingresso na universidade. “São inúmeros casos de crimes que ocorrem dentro ou ao redor do campus, e nada nunca é feito. Esse problema, infelizmente, culminou na morte da Janaína.” Para ela, essa situação afasta ainda mais muitas mulheres que sonham em cursar o nível superior. “Eu imagino a dor da minha família e de tantas outras que confiam suas meninas a universidade, e que acabam estando sujeitas a passar por situações assim”.

A estudante ainda afirma que não vê as universidades lutando ativamente contra isso. “ Notas e mais notas de repúdio, era apenas isso que recebíamos, nenhuma ação concreta. Aí ocorreu uma ocupação na reitoria que, para muitos, foi considerada um pouco radical, mas pareceu ter chamado atenção das autoridades. Hoje eu já vejo seguranças que antes não via, e estão capinando o mato”.

No entanto, Deborah reitera que a negligência ainda existe, e sempre culmina no pior. “O que aconteceu com a Janaína já aconteceu e, infelizmente, ainda pode acontecer nas demais universidades do país, então é necessário que não ignorem isso. Mancha a imagem das universidades que tanto lutam para formar o futuro, mas nada acontece se vidas são interrompidas”.

Além das universidades públicas

Casos de assédio, violência de gênero e estupro ultrapassam os ambientes das universidades públicas. Instituições de ensino superior particulares não estão isentas desses crimes, e, muitas vezes, as denúncias nesses locais acabam aparecendo menos em âmbito nacional.

Beatriz Cardinal, aluna de medicina da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), conta que grande parte das alunas não se sentem seguras em frequentar o campus. Isso porque em novembro do ano passado, em uma festa, uma estudante foi vítima de estupro de um colega da faculdade.

Segundo Beatriz, após o ocorrido, a vítima e outras alunas recorreram à direção da universidade para que o acusado fosse desligado, ou pelo menos afastado de ambientes como monitorias e ligas acadêmicas. No entanto, as autoridades da UNISC decidiram por não tomar nenhuma atitude enquanto o caso não fosse solucionado.

De acordo com a estudante, a vítima expôs a situação para a reitoria como forma de pedir ajuda para que pudesse voltar a frequentar o ambiente acadêmico sem sentir medo, assim como era o desejo de diversas outras colegas. Porém, mesmo com muitos pedidos e reuniões, juntamente a um abaixo-assinado, nada foi feito.

“É preciso refletir sobre essa negligência e se é justo alguém permanecer em contato com seu abusador na faculdade. Nós desejamos que a universidade tome medidas cabíveis sobre o caso, para que possamos transitar pelos corredores e ir a eventos sem medo de encontrar a pessoa que cometeu esse crime”. “Pedimos que nossas vozes sejam ouvidas e validadas, pois é importante lembrar que a impunidade gera reincidência.”

A complexidade dos casos

Carolina Bezerra, pesquisadora que estuda a violência de gênero na academia, conta que o assunto vai além de refletir o assédio nos ambientes universitários. “As violências que acontecem nesses espaços refletem dinâmicas de poder hierárquicas e formas de conhecimento produzidas socialmente.”

Segundo ela, muitas práticas que antes eram normatizadas hoje se configuram como assédio, e isso acontece graças a movimentos sociais, e, muitas vezes, também por conta da internet. “As percepções dessas violências acabam dialogando entre as universidades, os movimentos, como o feminismo, e a sociedade no geral. E nós não podemos ignorar como as redes sociais encontram essas experiências através de campanhas, como as hashtags metoo e meu primeiro assédio, onde mulheres narram situações e essas mobilizações influenciam outros espaços.”

Ao ser questionada do porquê de tantas denúncias, a pesquisadora afirma que é justamente essa mudança de pensamento que influencia as vítimas de violências de gênero a contarem suas histórias e buscarem ajuda. “A forma de encarar essas situações com a perspectiva de falha com os direitos humanos básicos, faz com que tenha um aumento a partir do momento que se tem uma visibilidade maior, e começa esse fenômeno social em que as denúncias crescem”.

Para Carolina, os danos causados às vítimas vão muito além da insegurança ao frequentar o ambiente acadêmico. “Na minha pesquisa, muitas mulheres que eu ouvia diziam que só foram perceber o quanto aquilo fazia mal falando ali comigo. E não só na vida acadêmica, mas profissional e pessoal também.”

Além disso, ela também cita pesquisas que apontam diferentes percepções de violências, e até mesmo, casos em que muitas não reconhecem o assédio sofrido. “Ao serem perguntadas se já sofreram violências no ambiente acadêmico, a maioria das alunas responde que não. Mas quando você apresenta uma lista do que pode configurar assédio, como ser interrompida, stalkeada, isso aumenta consideravelmente.”

Luz no fim do túnel?

Para Carolina, a situação é complexa e envolve todo um pensamento hierárquico institucionalizado socialmente, não somente nas universidades. Mas, o primeiro passo dentro das instituições de ensino superior é a informação. “A primeira questão seria as universidades esclarecerem em suas páginas o que são e como se configuram os diversos tipos de assédio. E possuírem tolerância zero com esse tipo de comportamento.”

“Além disso, disciplinas como direitos humanos, ética, e relações de gênero e sexualidade precisam estar incorporadas em todos os cursos. É importante também dinamizar as ouvidorias e os espaços de acolhimento.” A pesquisadora ainda completa dizendo que o processo após as queixas e denúncias também precisa ser repensado. “É necessário proteger as vítimas, e infelizmente muitas vezes a condução da sindicância acaba machucando muito mais esses corpos”.

No entanto, Carolina diz que muitas universidades já estão buscando modificar as condutas. “A forma com que as sindicâncias conduzem expõe as estudantes. Na maioria dos casos, por conta dos regimentos das instituições, as vítimas têm que narrar o acontecido na frente do agressor, e não é assim que a justiça prevê. Por isso, já existem universidades que estão buscando criar novos regulamentos, de acordo com a realidade em que estão inseridas.”

Sendo assim, por mais que ainda distante, a luz no fim do túnel existe. E o caminho é investir cada vez mais em campanhas e dar visibilidade a esses casos, mudando a perspectiva com que as universidades lidam com essas questões. Além disso, é parte crucial da luta pela segurança das mulheres em ambientes acadêmicos que situações de assédio e violência de gênero não sejam normatizadas, juntamente à adesão conjunta da sociedade ao combate, por meio de compartilhamento de informações e denúncias.

Qualquer denúncia de assédio deve ser encaminhada para a ouvidoria do órgão responsável pela instituição. O número para denúncias de assédio e violências contra a mulher da polícia é o 180.

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